terça-feira, 31 de janeiro de 2017

Por que precisamos de uma revolução?


Por Eric Garcia
os posicionamentos deste texto são de responsabilidade do autor


Na sociedade atual, é muito comum reduzirmos todas as coisas a produtos comercializáveis, ou seja, a mercadorias. Tudo que nos cerca tem um preço. Dos bens palpáveis (comida, carro, eletrônicos etc.) aos serviços (educação, saúde, segurança etc.). Até mesmo coisas como a vida privada alheia e os valores éticos podem ser comprados por aqueles que possuem mais recursos para pagar. Não é isso que acontece com os programas de TV estilo Big Brother, com revistas de Paparazzi e com os pequenos e grandes casos de corrupção que vemos todos os dias? Não deveria ser, mas é assim.
As implicações dessa nefasta característica de nossa sociedade podem ser terríveis. Cerca de 1,3 bilhão de toneladas de comida são desperdiçadas por ano[1], enquanto muitos seres humanos passam fome por não ter o que comer. Grandes crises do capitalismo aconteceram porque se produziu tantas mercadorias que elas ficaram acumuladas, estocadas, simplesmente pela impossibilidade de vendê-las, afinal, não existiam pessoas capazes de comprá-las. Para mudar isto, não há nada mais a fazer além de uma revolução das bases da sociedade capitalista.
Mas uma revolução não é simplesmente alterar, aqui e ali, aspectos pontuais da sociedade. Mudar uma política ou outra e manter a mesma estrutura social é apenas reformar o capitalismo, sem sequer alterar o fator que faz com que tudo que conhecemos possa se converter em mercadorias. Precisamos ir mais além. Quando uma estrutura de uma casa está comprometida, não adianta trocar uma parede de lugar, reformar o telhado ou o seu sistema elétrico. É necessário que se destrua as estruturas básicas da casa para construir outra estrutura no lugar. E é dessa transformação que precisamos na atual sociedade, ou caminharemos para uma barbárie, um futuro onde a saída não será outra senão “matar ou morrer”.
Até aqui, podemos concluir que uma revolução é necessária, afinal, as coisas não estão dando tão certo como verbalizam os defensores do capitalismo. Mas devemos prosseguir. Em primeiro lugar, devemos nos fazer uma primeira pergunta: essa revolução é possível? Uma mudança tão radical parece ser algo muito distante das nossas capacidades. Desde os tempos de nossos pais e avós as coisas funcionam assim, e parece que nunca vão mudar. Contudo, duas coisas devem ser postas na mesa: 1) Nem sempre foi assim! A história da sociedade é repleta de mudanças. As vezes elas podem demorar séculos para acontecer, por isso não nos lembramos qual foi a última. Seria um erro muito grande achar que não é mais possível transformar a sociedade; 2) Temos condições reais para fazer! Se levarmos em consideração que precisamos buscar uma nova sociedade na qual todas as pessoas tenham suas necessidades básicas atendidas, que tenham o que comer, onde morar, como se locomoverem, uma boa saúde e educação, a resposta não poderia ser outra: Sim, é possível! Por que não seria, se já somos capazes de produzir riquezas para atender as necessidades básicas de todos?
Para ilustrar essa nossa condição de fazer uma revolução nesse sentido, vamos lembrar que esse debate não é de hoje. No início do século 19, um economista britânico chamado Thomas Malthus criou uma teoria afirmando que com o crescimento acelerado da população, no futuro, não teríamos mais como sustentar a todos. Essa teoria, contudo, não conseguiu se sustentar. Alguns anos depois, Karl Marx, um economista alemão, usando os dados da produção econômica da Inglaterra, demonstrou que os meios de produção se tornavam cada vez mais avançados, e que produzíamos cada vez mais mercadorias. Hoje isso está cada vez mais claro, como visto no relatório da ONU citado acima sobre o desperdício de alimentos, e como podemos ver em outra reportagem da mesma organização que diz: “Paraguai produz alimentos para quase 60 milhões de pessoas, mas 10% da população passa fome[2], sendo que na época em que essa reportagem foi escrita, o Paraguai possuía apenas 7 milhões de habitantes.
Com tantas mercadorias que não chegam a serem consumidas simplesmente porque alguém não pode pagar por elas, fica claro que o problema está como organizamos nossa produção e distribuição de riquezas.
A partir daqui, é necessário inserir um debate considerando a existência das classes sociais. Aqueles que produzem toda essa riqueza, que transformam a matéria encontrada na natureza em bens que usamos no dia a dia, ou seja, a classe operária, pouco se apropria desta riqueza produzida. Por exemplo: de toda a riqueza que uma fábrica de carros produz, pouca coisa se converte em salários para os trabalhadores que lá atuam. Os sujeitos que verdadeiramente enriquecem com a fábrica são os donos dela. Enquanto isso, são os trabalhadores, principalmente aqueles que estão em empregos degradantes ou que se encontram desempregados[3], que encontram maiores dificuldades para sobreviver, para comer bem, para pagar seu aluguel ou seu meio de transporte, utilizando de serviços quase sempre precários. Já as classes dominantes e seus representantes não trabalham, não produzem, e vivem aos luxos e à custa do trabalho dos outros.
Apesar de produzirem toda essa riqueza material existente, os operários não decidem absolutamente nada sobre essa produção. Desde a escolha do que produzir, até mesmo ao processo de como e para quem produzi-la. Ao contrário, produzem sob o comando de outra classe social, a burguesia, classe que possui os meios de produção (fábricas, máquinas, terras, ferramentas etc.). O grande problema disso é que a história não é contada por completo. A burguesia só possui esses meios de produção graças a um longo processo histórico de expropriação de riqueza, ou seja, a retirada da posse dos trabalhadores. Afinal, se voltarmos até a origem de tudo, quem produziu os meios de produção? Quem produziu as máquinas? Quem arou a terra? Quem retirou a matéria prima ainda bruta da natureza? Quem, senão os próprios trabalhadores? Esse processo é real, e descrito por alguns estudiosos como acumulação primitiva[4].
Passemos para a próxima questão.
Após responder a primeira pergunta sobre a viabilidade da revolução, devemos nos fazer uma segunda pergunta: quem serão aqueles que levarão adiante um projeto revolucionário? E essa pergunta, de algum modo, já foi respondida aqui. Vejamos o porquê: se o que temos que revolucionar é “como organizamos nossa produção e distribuição de riquezas”, precisamos fazer isso de uma forma diferente. A classe operária é quem produz quase toda a riqueza da humanidade, porém, juntamente com outros trabalhadores, sofrem com a escassez dessa mesma riqueza. É o operário que, no chão das fábricas, transformam a matéria que encontramos em estado natural em mercadorias as mais sofisticadas possíveis.

É preciso deixar claro que, apesar de existir outras classes que produzem riquezas, como os artesãos e camponeses, esses não podem acompanhar o ritmo de produção das fábricas tecnologicamente mais avançadas. Essas outras classes também transformam a natureza em produtos, riqueza material. Contudo, o salto da produtividade que a técnica proporciona para as indústrias (sejam elas urbanas ou agrárias) é estratosférico! Uma indústria de sapatos produz milhares de vezes mais mercadorias do que um grupo de artesãos, bem como uma agroindústria de tomates produz toneladas a mais do que famílias camponesas. Não é uma questão de discutir se o camponês, o artesão ou o operário possuem relações mais humanas, coletivas, éticas ou qualquer outra coisa do gênero. É uma questão de possibilidades reais de garantir uma produção em grande quantidade, que sustente a todos, e nisso, a classe operária se destaca das demais.
Logo, numa revolução, a classe operária deve se fazer presente enquanto sujeito revolucionário fundamental, devendo estar organizada e consciente do seu papel revolucionário. Tomar e revolucionar os meios de produção utilizados pelos operários pode fazer com que a sociedade produza para todos de forma satisfatória. Para isso, o poder de decisão deve estar nas mãos dos operários, já que são aqueles que produzem quase toda a riqueza material. Nesse sentido, o projeto revolucionário socialista deve ser um projeto operário. Ficaria inviável utilizar dos meios de produção dos artesãos, camponeses ou de qualquer outra classe, e atender a todos satisfatoriamente.
Porém, isso não significa de maneira nenhuma que os operários farão qualquer revolução sozinhos. O projeto pode ter que partir desta classe, mas de forma isolada não farão mudança alguma. Outros seguimentos da classe trabalhadora, tanto os artesãos e camponeses já mencionados, quanto aqueles que não transformam a natureza em riqueza material (professores, taxistas, cientistas, faxineiros etc.) devem se juntar a esse processo revolucionário. Contudo, devem aderir ao projeto revolucionário da classe operária, devem leva-lo adiante, fazendo com que ele possa ter a possibilidade de se tornar algo real.

Essa adesão ao projeto de outra classe não se configuraria uma exploração de uma classe sob as outras, como ocorre na relação entre a burguesia e o operariado nos dias de hoje. O projeto revolucionário do operário tem como objetivo beneficiar todos aqueles que buscam construir uma sociedade coletivamente. O horizonte a ser alcançado é uma sociedade onde todos tenham suas condições de existência garantidas e, consequentemente, suas potencialidades humanas desenvolvidas. Não defendo que seja algo predeterminado, ou se quer que seja uma tarefa fácil. Mas é algo possível! Por isso, precisamos lutar cotidianamente contra a exploração e os ataques da burguesia, a favor de uma sociedade coletivamente construída.




[1] Como foi constatado no relatório da ONU em 2012: “A Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) estima que as perdas globais dos alimentos e o desperdício cheguem a 1,3 bilhão de toneladas por ano - cerca de um terço da produção mundial de alimentos”. Confira o relatório na íntegra em http://www.onu.org.br/rio20/alimentacao.pdf.
[3] Sobre a questão do desemprego, um texto do Jornal Faísca, publicado em Janeiro de 2015 explora este tema, buscando explicar a necessidade do desemprego no capitalismo. Leia no link: http://jornalfaisca.blogspot.com.br/2015/01/desemprego-as-pessoas-por-detras-dos_20.html.
[4] O tema da acumulação primitiva é muito extenso, e envolve um grande período histórico, que vai desde a crise do sistema feudal e das grandes navegações no século 15, até as manufaturas no século 18. Não teríamos condições de expor tudo isso aqui neste texto, mas indico a leitura do capítulo 24 do livro “O Capital”, de Karl Marx, chamado “A Assim Chamada Acumulação Primitiva”, ou de forma mais resumida,  no capítulo 9 do livro “Introdução a filosofia de Marx”, de Sérgio Lessa e Ivo Tonet, chamado “O feudalismo e a origem da sociedade capitalista”.