A face ditatorial dessa democracia
por Riviano e José Barata
as opiniões deste texto são de responsabilidade dos
autores

O perfil dos eleitores de Bolsonaro é bastante diverso[1].
Uma das pesquisas do IBOPE[2]
revelou que Bolsonaro tem uma maior proporção de eleitores entre aqueles com
renda familiar acima de cinco salários mínimos. Até aí não há muita surpresa.
Porém isso não explica a liderança dele nas eleições. Afinal, quantas pessoas
no Brasil tem uma renda familiar acima de cinco salários? Não se ganha uma
eleição sem conquistar o voto das massas. Logo, a grande questão é: como um
país, no qual 50% “população economicamente ativa” ganha menos de um salário
mínimo[3],
está indiferente ou a favor da eleição de um candidato de extrema direita como
Bolsonaro? Porque a grande massa dos trabalhadores brasileiros não está votando
no Partido dos Trabalhadores?
Inicialmente, vamos nos debruçar em uma das principais
armas de campanha do PT: a democracia ameaçada e a perda de direitos. Desde a
queda de Dilma Roussef, esse tem sido um ponto martelado pelos
social-democratas. Porém, depois de tanto tempo nesse mesmo discurso, parece já
estar claro que resgatar o fantasma da ditadura militar não está assustando o
grande eleitorado. Por quê? Para responder essa pergunta precisamos tentar
entender o que realmente significa viver sob uma democracia em uma sociedade
como a nossa. É evidente que, para uma parcela significativa da população, as
liberdades dessa democracia possuem um significado imenso, pois possuem um
mínimo de poder econômico que faz valer essas liberdades. Vivem em bairros
relativamente seguros sem o terror da polícia ou do crime organizado; esses
bairros podem até possuir uma infraestrutura mínima; possuem empregos formais
com carteira assinada e direito a aposentadoria. Todavia, existe uma imensa
quantidade de trabalhadores que não têm acesso a essas garantias. Para estes, é
evidente que estar vivendo sob uma democracia significa uma coisa completamente
diferente.
O chamado Estado
de direito não pode aplicar direitos iguais para pessoas que vivem em
condições de vida tão diferentes. Além do mais, infelizmente a perda desses
direitos não pode assustar aqueles que pouco ou nunca se beneficiaram deles na
prática. Precisamos refletir, por exemplo, quem nem todos serão realmente
afetados com a perda de direitos trabalhistas. Em 2017, a quantidade de pessoas
que trabalham por conta própria ou em vagas sem carteira assinada superou o
número daquelas que têm um emprego formal. Em números absolutos são 33.321
milhões de brasileiros que trabalham com carteira assinada contra 23.198
milhões que trabalham por conta própria, 11.115 milhões que trabalham sem
carteira assinada, além dos 12.311 milhões de desocupados[4].
E estes são apenas dados oficiais. Ainda devemos destacar, por exemplo, que o
IBGE considera “desocupados” apenas aqueles que ainda estão procurando algum
tipo de emprego. Se formos considerar também os indivíduos que já perderam a
perspectiva de serem empregados, o número de desempregados pode ser até quatro
vezes maior[5]. Nenhuma
dessas pessoas se beneficia com direito trabalhista algum, além de não haver
quase nenhuma perspectiva de que um dia serão beneficiadas.
Nada disso nega o fato de que as reformas trabalhista e
previdenciária afetarão a vida de muitos trabalhadores. Porém, vale ressaltar
que tais reformas fazem parte de uma política de austeridade motivada pela atual
crise econômica. Qualquer governo que assumir tentará implementá-las. O próprio
governo Dilma tentou aprová-las, porém não teve o apoio de um Congresso que
estava claramente sabotando o poder Executivo. Neste sentido, as reformas do
governo Temer são, essencialmente, uma continuidade do governo Dilma[6].
Seguindo adiante, vamos agora nos debruçar sobre a
questão da democracia ameaçada. A social-democracia, sobretudo o PT, acusa
Bolsonaro de querer restaurar a ditadura militar no Brasil. Esse discurso,
porém, parece não estar fazendo nenhum efeito. Muitos acreditam que isso é causado
por um anti-petismo irracional. Diante dessa situação, muitos estão chegando ao
ponto de parafrasear as palavras de Cristo, rogando a Deus que “eles não sabem
o que fazem”. Entretanto, o anti-petismo está longe de explicar a rejeição ao
PT. A ameaça de retorno à ditadura militar, todavia, não pode ter nenhum efeito
sobre aqueles para os quais tal ditadura jamais acabou. Será que existe alguma
democracia para aqueles que assistem a polícia invadir seus bairros, dia após
dia, para aterrorizar, torturar, espancar e matar impunemente? Qual o alcance
da liberdade de escolher representantes políticos para aqueles que vivem sob a
bota dos traficantes, da milícia ou da própria polícia? É muito possível, inclusive,
que a polícia hoje mate tanto quanto – ou até mais – do que na época da
ditadura militar[7].
Além dessa ditadura cotidiana, pudemos assistir, por
diversas vezes, o tal “Estado democrático de direito” agir com a mesma
violência do regime militar em vários momentos chaves da história brasileira.
Já em 1988, dois anos após a redemocratização, o governo Sarney utilizou a
polícia e o exército para conter uma greve dos metalúrgicos da CSN (Companhia
Siderúrgica Nacional). Durante a atuação das forças de segurança, três
operários foram mortos. O episódio ficou conhecido como Massacre de Volta
Redonda[8].
Em 1995, o governo FHC ordenou que o exército ocupasse quatro refinarias de
petróleo para reprimir uma greve dos petroleiros[9]. Também não podemos esquecer da forte
repressão policial às manifestações em junho de 2013, sob o governo Dilma[10],
que mais tarde convocou o exército para conter as manifestações contra a Copa
do Mundo (2014) e contra as Olimpíadas (2016)[11],
eventos que motivaram a criação da polêmica Lei Antiterrorismo[12].
Os exemplos são muitos, e todos eles servem para
demonstrar que todo Estado exerce uma ditadura ferrenha contra a classe
trabalhadora, independente do tipo de governo que o assuma. Qualquer governo
que estiver no comando do Estado exercerá necessariamente esse papel, pois a
função do Estado é garantir que a exploração capitalista funcione na mais
devida ordem. Por 13 anos foi o PT que representou essa ordem. Durante todo
esse tempo, ele governou o Estado para garantir o funcionamento de uma
sociedade extremamente desigual, utilizando de todo aparato repressor da
polícia e do exército, quando estes foram necessários.
Para todos aqueles que vivem sob a repressão diária da
polícia ou do tráfico, que desde muito tempo já trabalham sem nenhum direito,
que vivem entre o desemprego e a exploração mais intensa, é realmente difícil
convencê-los de que a vitória de Haddad seja uma opção “menos pior”. Para
estes, o governo do PT foi um governo como qualquer outro. A imensa maioria
dessas pessoas rejeita o PT não simplesmente por serem anti-petistas, nem por
considerá-lo um partido comunista – acusação que, diga-se de passagem, não
passa de um delírio imbecil da extrema direita. Muito provavelmente rejeitam o
PT porque, dentre outras coisas, era o governo da vez. Desgastou sua imagem. Era
o partido que estava no poder enquanto o Estado exercia sobre os trabalhadores a
mais terrível ditadura, em nome da democracia burguesa. No fim das contas, a
oposição aproveitou esse desgaste para se promover. Queimou ainda mais o filme
do PT, acusando-o de ser culpado de todos os problemas sociais e políticos do
Brasil.

Essa ditadura, por sua vez, transborda da esfera
econômica para a política. A burguesia utiliza todo o seu poder econômico para exercer
influência sobre o Estado. Financiam eleições, contratam lobistas para
conseguir acordos secretos dentro do governo, compram políticos com propinas
astronômicas. Com tamanha influência sobre o Estado, a burguesia o utiliza como
instrumento para garantir a manutenção do poder ditatorial que exerce sobre sua
propriedade privada e, consequentemente, sobre os trabalhadores ligados a ela.
Por isso, qualquer governo sempre irá utilizar o exército ou a polícia para
reprimir uma greve ou levante das massas. Na parte 4, vimos como um governo
“socialista” pode ser sanguinário contra a classe trabalhadora[13].
Apesar de muitas vezes serem concorrentes entre si ou de
possuir frações de classe que esporadicamente entram em conflito, as classes
dominantes exercem um comando coletivo dentro do Estado. Fazem seus acordos e
tomam decisões visando atender objetivos comuns. Organizam-se em federações,
associações e sindicatos patronais para representar seus interesses dentro do
governo. Entre si, podemos dizer que as classes dominantes vivem uma democracia
e exercem livremente seus interesses. Essa democracia, entretanto, mostra sua
face ditatorial para aqueles que não possuem o poder econômico nem para exercer
qualquer influência sobre o Estado, nem para decidir o que fazer com o produto
do seu trabalho. Portanto, a sociedade na qual vivemos é uma moeda de lados
opostos. Enquanto a burguesia vive em plena liberdade, a classe trabalhadora
está presa em uma escravidão assalariada[14].

Houve diversas tentativas revolucionárias da classe
trabalhadora se organizar democraticamente contra as classes dominantes a partir
da experiência dos conselhos operários[15].
Essa “forma conselho” de organização da classe trabalhadora apareceu pela
primeira vez, em sua forma germinal, na Comuna de Paris (1871) e, mais tarde,
na Rússia (1905 e 1917), Itália (1919-1920), Hungria (1919), Alemanha
(1918-1923) e em outras experiências históricas. É necessário nos debruçarmos
sobre tais experiências, analisando seus erros e acertos, se quisermos
realmente lutar pela construção de uma democracia para a classe trabalhadora.
É possível que você esteja, neste ponto do texto, achando
o desfecho dessa reflexão uma realidade muito distante. Os conselhos operários
não aparecem há quase um século. Não existe nenhum processo revolucionário em
curso. Devemos, então, cruzar os braços e esperar que alguma revolução caia do
céu? Não existem problemas mais urgentes para serem solucionados? O devemos
fazer neste momento diante das ameaças imediatas? A sexta parte desta série de
artigos refletirá sobre essas questões.
[1]Vice
Brasil (YouTube) –
O Mito de Bolsonaro: o que pensam e como se organizam seus apoiadores? (clique aqui).
[4]G1 - Trabalho sem carteira assinada
e 'por conta própria' supera pela 1ª vez emprego formal em 2017, aponta IBGE (clique aqui)
[6]Congresso
em Foco -
Reforma da Previdência de Dilma tinha pontos em comum com a de Temer (clique aqui)
[7]Revista
ADUSP – Polícia
Militar mata à larga, como a repressão política na ditadura (clique aqui); Medium - “A polícia mata mais hoje do que na ditadura militar”: Uma
entrevista com Maria Helena Moreira Alves (clique aqui); Faculdade Cásper Líbero - A ditadura e a violência no Brasil hoje (clique aqui).
[9] Folha de São Paulo – Exército ocupa refinarias e produção é
retomada (clique aqui); VIOMUNDO – Greve dos petroleiros de 1995 (clique aqui).
[11] Jornal Estado de Minas – Dilma afirma que Exército vai atuar contra
protestos (clique aqui); Senado Notícias – Gleisi Hoffmann defende convocações das Forças
Armadas feitas por Dilma Rousseff (clique aqui).
[12] El País - Lei de terrorismo, aprovada no Senado, fragiliza
protestos no Brasil (clique aqui); Wikipédia – Lei Antiterrorismo (clique aqui).
[15] Arquivo Marxista na Internet – Pannekoek: Os Conselhos Operários (clique aqui); Informe e Crítica – Nildo Viana: A Revolução Russa de 1905 e os
Conselhos Operários (clique aqui); CCI – O que são os conselhos operários? (clique aqui); Pinheiro; Martorano (orgs.): Teoria e prática dos Conselhos
Operários (clique aqui).